Ñandereko: um jogo sobre a cosmovisão Guarani

Por Monise Berno
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Com "Ñandereko", Júlia espera despertar nos jogadores o reconhecimento de sua própria identidade e uma reflexão profunda sobre a ancestralidade, trazendo à tona valores universais presentes na cosmovisão indígena que podem ser aplicados na vida cotidiana.

Jogos educativos têm se mostrado ferramentas pedagógicas eficazes na conscientização e no combate a preconceitos sobre diversos temas. Por meio de atividades lúdicas, é possível abordar questões complexas de maneira ível, promovendo a reflexão e a empatia entre os participantes. Por exemplo, jogos de tabuleiro gratuitos disponíveis na web tratam das relações raciais de forma lúdica, contribuindo para a educação antirracista. Ao engajar os jogadores em narrativas e desafios, esses jogos facilitam a desconstrução de estereótipos e incentivam a adoção de perspectivas mais inclusivas. Nesse contexto, a AJN conheceu o jogo “Ñandereko – O jeito de ser Guarani”, desenvolvido por Júlia Neres, que busca promover a cultura e os valores do povo Guarani através de uma experiência interativa e educomunicativa.

Júlia Neres. Acervo pessoal

Júlia Neres é educomunicadora, designer e artista em São Paulo. Atualmente, atua como comunicadora no “O Corre”. Em seu portfólio no Behance, Júlia se apresenta como uma designer gráfica com foco em educomunicação. Em suas redes sociais, ela compartilha reflexões sobre sua trajetória artística e profissional, destacando sua atuação como ilustradora e designer gráfica.

“Ñandereko – O jeito de ser Guarani” visa promover a cultura e os valores do povo Guarani por meio de uma experiência lúdica e educativa. O projeto surgiu como um desdobramento de sua pesquisa “Memória Enquanto Direito: Apagamento de lutas populares na Zona Sul”, na qual Júlia investigou a demarcação de terras indígenas Guarani em Parelheiros. Durante essa investigação, ela percebeu a dificuldade de encontrar informações sobre a memória indígena no período da ditadura militar, o que a motivou a aprofundar-se na cosmovisão Guarani e desenvolver o jogo como forma de popularizar esses saberes.

O “Ñandereko” baseia-se nas Nove Grandes Virtudes Guarani: o bom ser (tekó porã), a justiça (tekó jojá), as boas palavras (ñe’e porã), as palavras justas (ñe’e jojá), o amor recíproco (joyahú), a diligência e a disponibilidade (kyrey), a paz profunda (py’a guapy), a serenidade (tekó ñemboro’y) e um interior limpo e sem duplicidade (py’a poti). Essas virtudes servem como ponto de partida para diálogos sobre identidade, pertencimento e modos de vida.

A estética visual do jogo foi inspirada na cultura hip-hop e no pixo, buscando uma identidade visual conectada à cultura periférica sem cair em estereótipos. Júlia vê os jogos educativos como ferramentas potentes para a reconstrução da memória coletiva e para a luta contra o epistemicídio, com potencial para criar espaços para que as pessoas se reconectem com suas origens e reflitam sobre identidade e pertencimento. Nessa entrevista, Júlia compartilhou com a gente um pouco sobre o processo criativo, suas inspirações, referências e possibilidades para “Ñandereko” em diferentes contextos.

Leia a entrevista completa:

Monise Berno (MB) – Como foi o seu processo de pesquisa para a criação do jogo “Ñandereko”?

Júlia Neres (JN) – O jogo ‘Ñandereko’ surgiu como um desdobramento da minha pesquisa ‘Memória Enquanto
Direito: Apagamento de lutas populares na Zona Sul’
, especificamente da terceira parte, que trata da demarcação de Terras Indígenas Guarani em Parelheiros. Durante essa investigação, percebi a dificuldade de encontrar informações sobre a memória indígena na época da ditadura militar, especialmente porque esse período coincide com o surgimento da educomunicação no Brasil, em um contexto de Guerra Fria e disputas narrativas.
No percurso, descobri os conceitos de Ñandereko e Djuruareko, e senti que precisava aprofundar essa investigação. Não me senti confortável em posicionar a educomunicação como a única ferramenta de emancipação para a cultura indígena, sobretudo por ser uma perspectiva externa, de djurua (não-indígena).

A partir desse questionamento, senti a necessidade de aprofundar a investigação sobre a cosmovisão Guarani de um jeito que permitisse às pessoas se identificarem. O processo ganhou mais direcionamento quando visitei o Museo Histórico El Mensú, na Ciudad del Este, Paraguai. Lá, me deparei com um quadro sobre a simbologia Guarani Mbya, o que me levou a leituras em espanhol em que encontrei as Nove Grandes Virtudes Guarani, que se tornaram a base do projeto. Essas virtudes são: o bom ser (tekó porã), a justiça (tekó jojá), as boas palavras (ñe’e porã), as palavras justas (ñe’e jojá), o amor recíproco (joyahú), a diligência e a disponibilidade (kyrey), a paz profunda (py’a guapy), a serenidade (tekó ñemboro’y) e um interior limpo e sem duplicidade (py’a poti).

Minha metodologia de popularização da ciência sempre parte da organização em estruturas visuais, com números, diagramas e categorias bem definidas. Foi a partir disso que percebi que as Nove Virtudes não apenas sintetizam aspectos fundamentais da filosofia Guarani, mas também funcionam como um excelente ponto de partida para diálogos sobre identidade, pertencimento e modos de vida.

MB – Quais fontes e metodologias você utilizou para garantir a representatividade da cultura Guarani?

JN – Para garantir a representatividade da cultura Guarani no projeto ‘Ñandereko’, utilizei uma abordagem de pesquisa que combinou fontes diretas e diversas metodologias. Além da pesquisa documental e leituras em espanhol e português, busquei referências diretas em lideranças e produções indígenas. Fiz visitas a territórios indígenas, como a Tekoa Krukutu, na zona sul de São Paulo, e também realizei pesquisas em museus que possuem acervos sobre povos indígenas, como o Museo Histórico El Mensú, na Ciudad del Este (Paraguai), o
Museu das Culturas Indígenas e o Museu das Favelas, buscando referências visuais, históricas e narrativas sobre a cosmovisão guarani.

Além disso, aprofundei-me em leituras de livros, artigos acadêmicos e teses que abordam a história e a luta dos Guarani, assisti a documentários, ouvi podcasts e músicas e participei de eventos e shows que valorizam a cultura indígena. Mas, para além da pesquisa formal, um ponto fundamental desse processo foi o diálogo e a troca com minha família, amigos e colegas sobre nossa ancestralidade, sobre o movimento de retomada e sobre como a auto identificação racial é um processo complexo para afroindígenas e indígenas em contexto urbano e periférico.

MB – Quais foram as principais inspirações que influenciaram o desenvolvimento do jogo, tanto em termos de mecânicas quanto de estética visual?

JN – O desenvolvimento do jogo foi influenciado por diferentes referências teóricas e estéticas, sempre com o compromisso de evitar representações caricatas ou reducionistas da cultura Guarani. Uma das principais bases conceituais veio do livro Racismo Ambiental e Emergências Climáticas no Brasil, do Instituto Peregum que ganhei no curso “Como mitigar desinformação ambiental em contexto urbano e periférico?” da ÉNois Conteúdo. No capítulo ‘Ecocídio, racismo, patriarcalismo e mudanças climáticas’, o texto apresenta a hegemonia estruturada em três pilares: ecocídio, etnocídio e epistemicídio. O jogo foi desenvolvido com foco no epistemicídio da cosmovisão Guarani, ou seja, na invisibilização e apagamento dos seus saberes.

Durante a disciplina ‘CCAA320 – Educomunicação Socioambiental’, ministrada pela professora Thaís Brianezi na ECA/USP, fui desafiada a criar materiais paradidáticos voltados para o enfrentamento do racismo ambiental, com a proposta de disponibilizá-los online. Esse exercício me fez perceber um aspecto que eu não havia considerado antes: o potencial do conteúdo para ser utilizado de forma interativa, o que o tornava ainda mais ível e
engajador. Além disso, tive a chance de testar o material com professoras e professores de escolas públicas, o que me permitiu observar, de forma prática, como o conteúdo poderia ser utilizado em sala de aula, proporcionando uma forma criativa e pedagógica de abordar esse tema.

A estética visual foi pensada para se aproximar do pixo. Não queria algo caricato que pudesse ser desrespeitoso, mantendo uma identidade visual conectada à cultura periférica sem cair em estereótipos. A cultura hip-hop como um todo é estratégia de retomada do território, e queria que ela se conectasse com a cultura indígena, porque é assim que é na vida real. A periferia é a aldeia e o quilombo. O design visual do projeto como um todo,
incluindo as artes digitais, gráficas e o grafite feito na revitalização do DCE/USP, promovido pelo Coletivo USPIXO e outros parceiros, tem como objetivo usar a linguagem do hip-hop para tratar das questões de identidade, território e memória.

Grafite feito no “Point da USPIXO” em 16/11/24 que revitalizou o DCE da USP, promovido pelo Coletivo USPIXO, pela Diretoria de Cultura e Eventos do DCE da USP, pelo Slam Marginal da USP e pelo Slam Ousadia. Foto: Acervo pessoal

Dado que o jogo contém palavras em língua Guarani e é composto por várias cartas, a dinâmica de jogo precisaria ser simples para que as partidas não se tornassem longas e o tempo dedicado à leitura dos textos da cartilha, bem como às explicações sobre as virtudes ou histórias das anciãs/anciãos, não fosse excessivo. Por isso, optei pela mecânica clássica do jogo da memória, com uma estética minimalista no conteúdo explicativo, permitindo que as artes remetessem ao pixo, criando um equilíbrio entre simplicidade e profundidade no
jogo.

MB – Como você enxerga o papel dos jogos educativos na valorização e preservação das culturas indígenas no Brasil?

JN – Vejo os jogos educativos como uma ferramenta extremamente potente para a reconstrução da memória coletiva e como um instrumento fundamental na luta contra o epistemicídio. Jogos como “Ñandereko” não só apresentam e preservam conceitos culturais Guarani, mas também criam um espaço para que as pessoas possam se reconectar com suas origens, refletir sobre identidade e pertencimento, e compartilhar suas próprias histórias.
Durante as experiências com o jogo, observei como participantes, ao entrarem em contato com a cultura guarani, começaram a revisitar suas próprias raízes, questionando e resgatando memórias familiares e afetivas, muitas vezes relacionadas à seus questionamentos de auto identificação racial também.

MB – Você enfrentou desafios para integrar elementos culturais tradicionais em uma plataforma de jogo moderna, e como os superou?

JN – Sim, o maior desafio foi traduzir a complexidade e a riqueza do conteúdo cultural Guarani para uma mecânica de jogo simples, sem reduzir seu significado ou profundidade. Encontrar um equilíbrio entre simplicidade e profundidade foi uma tarefa difícil, especialmente considerando que o jogo aborda conceitos profundos como virtudes, sentimentos e afetividades que estão muito ligados à cosmovisão Guarani.
Por exemplo, o termo “piá”, que em algumas regiões do Sul do Brasil é usado como gíria para chamar alguém, tem um significado profundo na língua Guarani. Ele vem de “py’a”, que significa estômago, mas também pode ser entendido como “coração”. No Guarani, o estômago é considerado o centro das emoções, e isso se reflete em expressões como “py’a yku” (estômago derretido), que simboliza ternura, ou “py’a eta”, que expressa a sobrecarga de preocupações. Essas nuances são essenciais para a compreensão da cosmovisão Guarani e, ao mesmo tempo, íveis para quem joga, criando um vínculo emocional com o conteúdo. Você pensa em você e na sua história quando você pensa em como digere seus sentimentos.

Além disso, os temas tratados, como saúde mental, violência contra povos indígenas e a morte, são intensos e tentar abordá-los de maneira ível, sem que se tornem superficiais ou muito densa, exigiu um esforço de sensibilização constante. Durante a pesquisa, fui confrontada com imagens e relatos de violência contra povos indígenas, como a fotografia de extremamente explícita do rosto de Nhandesy Estela Vera após seu
assassinato. Estela Vera tinha características físicas muito semelhantes à de minha avó materna Brasília Neres Fonseca da Costa. Minha avó segue viva e presente, enquanto Estela Vera segue viva apenas em memória. Especialmente ao refletirmos sobre os anciãos e anciãs nas cartas do jogo, que, assim como Estela Vera, representaram tanto a resistência quanto a perda. Algumas dessas figuras viveram quase 100 anos, enquanto outras foram mortas antes disso, o que precisa ser considerado ao discutirmos as questões de resistência, memória e luta.

Família Neres. Da esquerda pra direita: Julia Cristina Neres Santos; Sueli Neres Costa; Basilia
Neres Fonseca da Costa e Elvira Maria da Fonseca. Foto: Acervo pessoal

Outra questão importante, é que me foi partilhado durante o projeto sobre como ele estava afetando e atravessando algumas pessoas. Uma delas, era um artista, um homem indígena periférico que me disse que esse conteúdo estava o ajudando em seu processo de luto de um amigo que tinha se suicidado recentemente e aprender sobre ñandereko estava o ajudando em seu processo artístico e para permanecer no coletivo atuando com eventos de celebração a cultura indígena e nordestina nas periferias.

O jogo também toca em saúde mental, pois a violação de direitos leva ao “vy’ae’y” – a ausência da vontade de viver. Em relação ao suicídio indígena, percebo uma prática no jornalismo e no movimento indígena de tratar essas mortes como assassinatos, independentemente da forma como aconteceram. Isso porque, no contexto de necropolítica e genocídio, qualquer morte violenta que atinja um povo indígena deve ser tratada como um
ato de violência política. Acho que o maior desafio é que o trabalho da educomunicação traumatiza às vezes.

MB – Além de um jogo da memória, o que jogadores vão encontrar ao conhecer “Ñandereko”?

JN – O jogo vem acompanhado de uma cartilha que amplia a experiência. Além das instruções, ela apresenta um roteiro de bate-papo, dinâmicas e informações sobre as lideranças homenageadas. A proposta é que o jogo vá além de um simples atempo, funcionando como um ponto de partida para reflexões coletivas sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, suas lutas históricas e contemporâneas e como isso se conecta com questões mais amplas de sociedade como racismo ambiental, justiça territorial, direitos humanos e saúde mental.

MB – Que reflexões ou sentimentos você espera despertar com o jogo?

JN – Com Ñandereko, o que realmente espero despertar nos jogadores é o reconhecimento de sua própria identidade, independentemente da etnia, e uma reflexão profunda sobre a ancestralidade. Quero que eles se vejam nas histórias e nos valores que o jogo compartilha, e que, ao se conectar com essas narrativas, possam refletir sobre si mesmos, sobre o próximo e sobre o mundo à sua volta. O jogo busca trazer à tona o conceito de “bem viver”, equilíbrio e espiritualidade — valores universais presentes na cosmovisão indígena, mas que
podem ser aplicados de forma ampla na nossa vida cotidiana. Memória indígena não é só sobre o ado, e sim do que é contemporâneo e como a história se faz presente em nós.

Arquivos do jogo:

O jogo está disponível gratuitamente aqui: bit.ly/jn-nandereko

Conheça o projeto completo: behance.net/gallery/215349931/NANDEREKO-O-JEITO-DE-SER-GUARANI.

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