Nessa entrevista, Léo Maltrapilho compartilha sua jornada, marcada por desafios, e como transformou essas dificuldades em força criativa, tornando-se contador de histórias. Ele enfatiza a favela como berço de inovação cultural e econômica, com destaque para a música, que conecta, educa e transforma realidades.
Seu livro Teologia de Favela propõe protagonismo aos moradores, valorizando narrativas autênticas e ressignificando a teologia a partir da realidade favelada. Ele também trabalha em um novo projeto, O Evangelho Segundo um Favelado, que traduz os Evangelhos para a linguagem das periferias.
Léo compartilha suas referências culturais como o álbum Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC ‘s, e o livro O Evangelho Maltrapilho, de Brennan Manning, que marcaram sua formação espiritual e social. Ele conclui com a crença de que a transformação é possível e que a favela, com sua potência criativa e resistência, é fundamental para um futuro mais inclusivo e justo.
O que te vem à mente com esse termo: Teologia de favela? Pense alguns minutos sobre isso.
FAVELA É POTÊNCIA!
Porque favela, para além de ser um lugar teológico, essa geografia, ela também produz… e produz MUITO!
Ela também produz arte, ela produz cultura, ela produz diversidade, pluralidade, comunicação comunitária, produção intelectual, pesquisa e estudo.
Favela é potência, porque favela também é ALEGRIA!
Favela é Ubuntu: eu sou, porque todos nós somos.
Favela é onde se compartilham todas coisas.
Essa é uma fala de Léo Maltrapilho, que além de organizador do livro, é teólogo, escritor e pastor, conhecido por sua atuação na militância do movimento negro brasileiro. Conversei com ele, uma pessoa que considero muito especial e com uma história muito inspiradora.
Léo Maltrapilho (LM) – É uma alegria muito grande estar aqui hoje. Esse convite é muito especial porque, para mim, representa uma quebra de bolhas. Normalmente, os convites que recebo estão sempre conectados às discussões e áreas em que atuo, mas esse espaço tem uma energia diferente. Então, agradeço pelo carinho, pelo convite e, principalmente, pela confiança.
Quem sou eu? Bem, quando a editora me convidou para lançar meu primeiro livro, pediram meu nome completo. Eu enviei, mas sugeriram que colocassem “Léo Maltrapilho” na capa. Achei perfeito. O “Léo Maltrapilho” é o sonhador, um idealista realista, o cara esperançoso e movido pela conexão com as pessoas.
Sou teólogo por formação, pós-graduado em Missão Integral e Direitos Humanos, e atualmente estou me especializando em Ciência da Religião, com ênfase em Educação Religiosa. Além disso, sou educador popular, trabalho em projetos como o “Rodar Cultura e Missão”, que atua no sistema socioeducativo, em escolas, presídios e outros lugares onde somos chamados. Sou escritor e, atualmente, pastor evangélico da Igreja Garagem Rio, uma comunidade de fé no Rio de Janeiro que carrega características únicas.
Minha jornada começou em um contexto de muitas dificuldades, incluindo a dislexia, que só foi diagnosticada na fase adulta. Tive problemas de aprendizado na infância, o que atrasou meu desenvolvimento. Não sabia ler até os 12 anos. Minha mãe, percebendo minhas limitações, contava histórias para mim. Repetia as mesmas histórias várias vezes, e eu ouvia como se fosse a primeira vez. Essa prática moldou quem eu sou hoje: um contador de histórias. Transformei minha maior dificuldade na coisa que mais amo fazer, que é escrever.
A favela é um espaço que me atravessa em tudo o que faço. Cresci nesse caldeirão diverso de culturas, espiritualidades e resistências. Apesar das problemáticas, há uma beleza imensa nas conexões e na potência criativa desse lugar. Trabalhar em projetos de cultura, arte e educação só reforça o quanto a favela é vibrante e cheia de histórias que merecem ser contadas.
Vitor Ranieri (VR) – Léo, é incrível ouvir você. Fico muito feliz em ter você aqui porque o seu trabalho me atravessou em muitas camadas. Quando ouvi você no podcast do Novas Narrativas Evangélicas, sua fala foi tão potente que eu soube que precisava trazer você para uma conversa. E agora, vendo o quanto suas vivências na favela moldaram quem você é, gostaria que você contasse um pouco mais sobre como essas experiências da infância contribuíram para o que você produz hoje.
LM – Minha infância foi repleta de desafios, mas também de aprendizados. Crescer na favela significa estar exposto a múltiplos atravessamentos, tanto da violência quanto das ausências do Estado. Mas também é estar rodeado de uma riqueza cultural incrível. A música, o funk, o samba, o pagode, as danças… Tudo isso compõe o DNA da favela. É uma resistência diária e, ao mesmo tempo, uma celebração da vida.
Hoje, a favela é o principal motor da economia no Brasil, como apontam dados do Celso Athayde [fundador da CUFA – Central Única das Favelas]. É um espaço que consome, gera cultura, arte e inovação. A história da favela, desde seu surgimento com o Morro da Providência no Rio de Janeiro, é uma história de resistência. É uma luta contra a ausência e a violência do Estado, mas também uma celebração da criatividade e da potência das pessoas que vivem nesses espaços.
A produção cultural da favela influencia o mundo. A moda, a música e até as artes visuais refletem essa potência. É emocionante ver o quanto jovens da favela estão tomando o protagonismo para contar suas próprias histórias, rompendo com narrativas externas e estigmatizadas. Eu sou apenas um grão nesse movimento, mas acredito que é assim que construímos algo maior.
VR – É incrível como você fala sobre a favela como esse espaço de potência criativa e resistência. E o que mais me impressiona é a conexão que você faz entre a ausência do Estado e o papel que a igreja ocupa nesses espaços. Você mencionou algo muito bonito no episódio do Novas Narrativas: como a igreja consegue suprir algumas lacunas, oferecendo o à arte, à música e até à formação cultural. Fala mais sobre isso.
LM – A igreja tem um papel fundamental na favela. É um espaço que não apenas acolhe, mas também fortalece e oferece oportunidades. Muitas vezes, o que o Estado não faz, a igreja tenta preencher. Seja por meio de projetos culturais, seja promovendo educação ou apenas sendo um lugar de escuta e acolhimento. Isso é muito significativo para a transformação das pessoas e do território.
A favela é resistência, criatividade e amor. E, como sempre digo, o sorriso de um favelado é a maior arma contra o sistema. Apesar de tudo, continuamos criando, sonhando e vivendo. É isso que me move. É algo que a gente não vai vencer no dia pro outro. É algo que a gente vai continuar lutando, né? O Oscar Romero, da teoria da libertação, diz algo muito interessante, ele diz: “Nós somos profetas, anunciadores, profetas de um futuro que não nos pertence.” Talvez a gente não veja essa mudança aqui em vida, mas com certeza nós estamos contribuindo para que haja a mudança. Estamos no caminho.
VR – Eu gosto muito desse fôlego de esperança que você traz. Esse sentido de que a gente está construindo possibilidades. Eu gosto de dizer que as ferramentas culturais, especialmente a música, sempre me atravessaram. As relações que eu tenho e a minha forma de pensar são muito fundamentadas pelo que consumo enquanto visão e projeção.
LM – O mundo, né? A música tem um papel fundamental em momentos históricos. Quando movimentos são silenciados, é a arte que comunica. A música tem um poder revolucionário. Lembro como artistas, metaforicamente nas letras, denunciavam situações como a ditadura. Ela cria linguagem, estética, formas de ver o mundo. Ela agrupa pessoas: quem gosta de funk se veste de um jeito, o cara do rock de outro, e por aí vai. Hoje, vemos gêneros como trap e drill nas favelas em massa. Se você quer entender uma juventude, comece ouvindo o que ela ouve.
As músicas revelam os atravessamentos neoliberais, os anseios de uma juventude que quer conquistar o que sempre foi negado. Foi no rap que aprendi sobre figuras como Martin Luther King e Malcolm X. Foi no rap que entendi o que é ser preto e favelado. Racionais nos educaram. A música sempre me moldou, não só estética, mas também na forma de ler o mundo.
Eu sempre gostei de músicas de protesto, rap e rock com teor crítico. Antes mesmo de entender, aquilo sempre me comunicava. Foi a música, não a escola ou a família, que me fez enxergar muitas coisas.
VR – É incrível ouvir isso, mesmo. Meu podcast nasceu de um projeto escolar, mas é interessante como a música promove algo maior, uma transformação. Ela conecta a dor social à possibilidade de mudança. Lembro que, ao pensar no nome do podcast, conversava com alguns amigos, e todos compartilhavam a mesma percepção: o poder transformador da música.
Foi daí que surgiu o nome do podcast ‘O Que Você Não Quer Ver’. Ele reflete a dualidade que enfrentamos: às vezes, não queremos enxergar as dores da sociedade, preferimos ignorar a racionalidade ou nos afastar da apatia do sistema. Por outro lado, há quem escolha se conectar profundamente com tudo isso, e muitas vezes, a música é o caminho que usamos para lidar com essa dualidade, seja para não sentir nada ou para participar de uma transformação.
Falando em transformação, queria ouvir sobre o seu livro Teologia de Favela, essa obra incrível.
LM – Antes disso, lembrei do impacto que a música pode ter no contexto de saúde mental ao longo da sua fala. No CAPS, onde trabalho com transtornos graves e moderados, sempre que um paciente está em crise, gosto de perguntar: ‘Qual música você gosta? Qual artista te inspira?’. É impressionante como essa simples pergunta muda o ambiente. Eles não estão acostumados a serem questionados sobre isso em momentos tão difíceis. Quando coloco para tocar a música que gostam, percebo uma mudança imediata: a música acalma, traz um respiro e abre espaço para diálogo. Já cheguei a conduzir conversas inteiras com o paciente enquanto ouvíamos juntos a música que ele escolheu. É poderoso. É amor em forma de som.
Mas sobre o livro Teologia de Favela, ele nasceu da necessidade de contar histórias reais e dar rosto às narrativas. Sou o autor e organizador, e convidei pessoas incríveis para escreverem comigo. A ideia surgiu a partir das reflexões que eu já compartilhava nas redes sociais, percebendo como a favela era retratada de forma rasa e distante da realidade. Muitas vezes, quem fala da favela não viveu essa experiência e, por isso, não compreende sua profundidade.
Embora eu ame a Teologia da Libertação, percebo que, às vezes, ela trata o pobre de forma generalizada, como se não tivesse rosto, nome ou história. Em Teologia de Favela, quis dar um o além: trazer o protagonismo de quem vive essas histórias, de quem sente na pele e no coração o que é a vida na favela. É uma obra sobre reconstrução, verdade e representatividade. Uma forma de dar voz a quem, por tanto tempo, foi silenciado.
Com essas histórias, é como se a gente colocasse uma luva e fosse direto para a beira da Dona Sônia, para o São José, para o seu Armando, para a irmã Zeni. A gente consegue contar as histórias dessas pessoas, atravessadas por suas vivências com a espiritualidade, com Deus, com os Orixás.
Esse livro é fruto disso, cara: um livro de histórias vividas, faveladas, de uma teologia negra que caminha com Deus ao lado das pessoas pretas. Eu costumo dizer que a teologia de favela é Deus de rolê com os cria – num pião, como se diz aí em São Paulo.
E foi assim que surgiu essa obra. E, em breve, vem mais por aí. O Evangelho Segundo um Favelado. Esse novo livro vai partir do mesmo conceito, mas ampliando os horizontes, traduzindo a Bíblia para uma linguagem favelada, com as nossas gírias, as nossas formas de comunicar. Estou nesse exercício de reescrever os textos dos Evangelhos sob outra perspectiva. Vem coisa linda por aí!
VR – Você é Inspirador, Léo. Queria fazer um conectivo com o fato de você ser pastor e te ouvir sobre o que você vê de possibilidade para aquilo que será a favela nas próximas décadas, sei que você é um cara que fala comum fôlego de esperança e o que te move é a beleza nas pessoas e enxergando a beleza nas pessoas, como você vê possibilidade para a teologia de favela nas próximas décadas?
LM – Cara, eu vejo. Eu li uma vez em algum lugar que as duas profissões que nunca vão deixar de existir são o sacerdote e o psicólogo. Então assim, a religião e o autoconhecimento de si nunca deixarão de existir. A esperança é um dom, segundo a bíblia ela é essencial para mantermos o amor e a fé vivos. E falo muito isso para a minha comunidade de fé, sem a esperança que a nossa fé vai se esvair no meio do caminho. Eu acho que a esperança é a coisa mais importante que a gente tem. E a igreja tem me ensinado a enxergar com esse olhar mais terno de perceber a diversidade e como ela se constrói de forma diferente. Trabalhar em uma igreja inclusiva, como a nossa, que acolhe pessoas LGBTQIA+ e rejeitados por outros lugares, me dá essa perspectiva de futuro. Nós acolhemos aqueles que foram colocados pra fora. A mesa tem lugar pra todo mundo, mano. E a igreja da Garagem não é única, tem muitas outras aqui no Rio, em São Paulo e em vários lugares do Brasil. E não volta mais atrás. Acho que isso,
E citando Eduardo Galeano, a esperança está sempre a dez os a frente e quando a gente se aproxima ela anda mais dez os à frente, nos fazendo caminhar. E sempre é uma utopia que se afasta fazendo nos movimentar. E Paulo Freire fala de utopias realizáveis, a utopia possível. Por mais que a gente esteja caminhando atrás dessa utopia dessa esperança, eu boto muita fé que todos juntos nós vamos conseguir chegar nela. Vai dar certo.
VR – Vai dar certo, pô. Vai dar certo, Léo. Eu faço uma última pergunta que é muito sobre gerar pesquisa e gerar atravessamento para a galera que está ouvindo a gente, e eu faço a pergunta sobre três álbuns. Normalmente pergunto movimentado para álbuns, mas assim, pode ser livro, pode ser música, pode ser filme, pode ser o que você quiser. Desde que isso tenha te atravessado.
LM – Vou citar o primeiro que é tributo ao Black Sabbath. O primeiro contato que eu tive com o Rock, foi através do meu irmão. Lembro de estar ouvindo, por exemplo, o Ozzy Osbourne, e eu não entendia nada. Mas gostava.
Em segundo, quero dizer, o álbum Sobrevivendo no Inferno dos Racionais MC ‘s, que foi como se tivessem colocado no correio uma carta pra mim me chamando pra guerra. Pra mim, Sobrevivendo no Inferno retrata o Brasil com um recorte específico do contexto dos anos 80, num momento em que o Capão Redondo, assim como a cidade onde moro, Belford Roxo, era considerado pela ONU um dos lugares mais violentos do planeta. Este álbum retrata essa realidade de forma muito intensa.
Para encerrar, cara, acho que o livro O Evangelho Maltrapilho, de Brennan Manning, que deu origem a algo que eu mesmo coloquei em mim. Esse livro me ajudou no momento mais difícil da minha vida. Apesar de todas as minhas contradições e de quem eu sou, ele me mostrou que Deus me ama exatamente como eu sou, não como eu deveria ser, nem como eu acho que deveria ser. Até porque quem tem expectativas sobre mim sou eu, não Deus. Ele não tem expectativas sobre mim, Ele simplesmente me ama.
E é isso. Acho que são esses dois álbuns e esse livro.
VR – Você é grandioso, cara. Gostaria muito que mais pessoas tivessem a oportunidade de trocar ideias contigo. Sem dúvida, essa troca e essa entrevista vai atingir as pessoas que estiverem lendo.
LM – Eu que agradeço, cara. Foi uma honra estar aqui trocando ideias com você e com quem está acompanhando a gente.
VR – É isso. A gente encerra por aqui, mas espero te trazer de volta pra outros momentos, porque eu sinto que a gente ainda tem muita coisa pra conversar.